terça-feira, 27 de março de 2012

RIEN

Jê suis desolée, não vivemos em Paris. Vivemos na província que importou a arquitetura da fachada do Cimitière des Chiens, no passeio preferido das prostitutas. Não sei  desde quando  estão por lá. Vejo-as trotar desde quando mudei para Curitiba. Uma velha amiga disse que o Passeio Público era lugar de  footing, nos anos 50. Footing: casais vinham à Ponte dos Amores namorar. Você conheceu as histórias melhor que eu.
As semanas em que fiquei deprimida, não queria falar. Você  ligava. De  manhã, à tarde, à noite. Não viu como estava calada ? Ordinariamente sou calada.  Ordinária. Naqueles dias  vi, por acaso, na rua, uma página de jornal  que estampava um artigo que você escreveu.
Eu dormia o dia inteiro. Não lia jornais. Não queria ler livros, nem os teus. Escutava a  voz distante no telefone. A voz da lua ? O lunático ouvia, você explicou porque Fellini ficou tão famoso. Assentia, mordendo sílabas:  um-hum, a-ham. Caladíssima. E não sei porquê, naqueles dias em que você cuidava de mim, meu silêncio era extraordinário.
As cortinas do apartamento ficavam fechadas. De vez em quando ligava a tevê e ouvia o noticiário sem entender. Se tivesse forças iria à biblioteca emprestar livros de poesia. Escutava música, quando acordada.  E via filmes.
Lembrava de alguns filmes não exibidos pela tevê. Um louco em cima de uma árvore gritava,  queria mulher. De que filme, a cena ?  Num cinema não muito longe alguém gritava, não de cima de uma árvore, mas sobre a mesa, atirando pratos, e não queria uma mulher. Ou queria ?  Depois saí detrás da árvore (ameixeira?) que o louco cortou e pulei sobre você: buuuu. Minha vingança será terrível, agora lembrarás tudo.  Atravessei correndo a Ponte do Amor. Você correu atrás, puto: não corra, idiota. Idiotas gostam de correr, mas você não diria idiota. Mulher não se bate nem com. Uma chave o que vi entre os peitos da prostituta ? Você fumava desesperadamente, corri – e nem era proibido fumar.  Não suportava o cheiro da fumaça. Você falava em  Paris,  criticava Madonna e Michael Jackson. Quando começava a falar de sua fase francesa não parava mais. Quando me entediava, em vez de interromper meu interlocutor com uma piada, saía correndo. Saí do bar, cruzei a ponte  e encontrei os macaquinhos, pulando de galho em galho. Que desolação, seu destino é pular. 
Pular, pular, se tivessem um pula-pula, seriam micos de circo. Mas no Passeio eram só micos. Mico. Macacaquinhos fazendo macaquices. Brasileiro vive macaqueando  americano. No século passado macaqueava os franceses, né ? Cahiers du cinema, Jean-luc, Glauber. Em três semanas eu também macaquearia, pularia para dentro do apartamento e não veria mais ninguém.
Por que é que você não me ama? A pergunta que não quer calar.  Você é meu melhor amigo, a verdade: não amo nem a mim mesma. Viver é tão bom, você quase gritou, quando contou que ia receber mil reais de direitos autorais pela venda de três meses de seu último livro. Viver é tão bom  ! O louco que subiu a ameixeira e atirou os pratos sobre a mesa poderia dizer. Quero mulher !  Mas jogava os pratos espatifados sobre nós.
Você ligou para todas as suas melhores amigas (tantas!), gritando que viver era tão bom e ia receber mil reais. Como só soube muito tempo depois, como só soube depois que você pulou de um galho alto demais, para mim não era importante. Não tinha amigos. Não quer ver um filme hoje ? Depois de olhar fixamente para os macacos e você ter me deixado em casa, fiquei três semanas  trancada  no apartamento.  Viver é bom, você ligava, gritando de alegria. Outro dia revi Hiroshima mon amour.  Por que você gostava tanto ? Lembrar, esquecer. Tu n´a vus rien em Hiroshima. Queria ter ouvido você falar sobre o filme. Se tivesse tempo, explicaria.  Mas logo  que recomecei a sair de casa não te encontrei mais. Encontrei um novo amor. Meses depois alguém me disse que você ficou doente, não reconhecia ninguém. Repetia histórias sem pé-nem-cabeça. Quando telefonava para mim, repetia as histórias, duas, três vezes. Você já contou isso, eu gritava. Quantas vezes  a mesma história. Ninguém falava dessa doença.  Nunca mais te vi. Disseram que mudou de água para vinho. Era uma flor. Depois que me perdi de você, li todos os seus livros. Meu amor me abandonou mais uma vez. Não me tranquei em casa. Ia cinema sozinha. Li no jornal uma notícia  sobre você. Não quis ir ao enterro. 
Quase  todos os dias me lembro. Preciso escrever sobre teus livros e abro uma revista antiga. Lá está uma crônica com tuas palavras. Você rindo da cidade, feroz, irônico, rindo de quem ria de você.  Não quero mais ler o artigo. Na última fotografia publicada no jornal você sorri timidamente. E  descubro porque não quis ir ao teu enterro.

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