quarta-feira, 1 de julho de 2009

SELVA DE SENTIDOS

selva de sentidos

um sopro súbito: asas nos lábios
abertos da flor. o bico sorve
nuvens de veludo
no céu incolor.

seda estremece surdo vôo.
o sol veloz empapa a luz
a criança no jardim
assiste séria o curso.

um tremor leve afasta o beija-flor.
o quarto escuro gera o grito
- entre! a manhã cerra
as cortinas ao público.

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não consigo ficar livre
do gosto dos outros
o meu e o teu rosto,
superpostos são um ? sol impostor
ou vestígio de algum sentido
pedaços indefinidos
do todo invisível

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para o céu imenso
força é fardo
cem beijos e um bocejo
calam o frescor da relva
só o amor sem luvas
combate o tédio
invocando agudo senso
neste aguado engodo

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nuvens correndo
espinho no coração
chegar a lugar nenhum

a vida vai o tempo voa
o olho sai da selva
a chuva seca no quintal

sonho que nunca amanhece
a morte espia asas distraídas
a estrada escura

mas sede o rumo

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metamorfose

sob a casca
a lagarta da seda
arredonda a redoma
e sonha asas.

a sombra do luto
anuncia:
breve aqui
mais um fruto

a metamorfose

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imensidão

escalar montanhas
que só o silêncio influencia
reencontrar nas primeiras cavernas
vestígios de eternidades antigas
descobrir novos sentido e limite
além de sombras conhecidas
buscar sonhos que foram
mais que vento um dia:
alimento que a boca queria

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flua de ti amor quanto possa
não no corpo nem na mente
no sonho em que a pálida lâmpada
refulge bruma, estrelas
crucificadas, mutantes.

coração, estrela falsa,
em que apenas o azul
profundo brilha distante.


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falta sonho em lugar de palavra bruta onde estamos rio não é estrada largada para nada falta o coração em seu direito transmitindo a canção de fogo ao hemisfério desfeito a certas moedas não sucumbo aos pés dum céu medonho a terra vai passar a noite vem sem ninguém passar em mim a noite vem negro escudo sem fim esvazia o céu todo dia estrela outro dia vem a noite em mim sem açoite de alegria olhos presos a nuvens que não passam dias que não passam morte só um dia nada no céu tem porta viajo em busca de palavra que amanhece na boca o sol arranca da língua o som selvagem: água!

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sapatos na porta
guarda-chuva e sombrinha
sobre o lava-roupas

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no meio de páginas
do livro: gramas de traça
no ideograma.

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casa do sol

o jardim seco. e a dama bebe
após as sete

acorda às onze. lê jornais. “falam de mim?”
liga para deus e todo mundo.
“ninguém retorna”

confessa ao hóspede,
tem pena de parede
e cachorro de rua
(em sua cama dormem seis)

a criada guarda espingarda e pólvora
(prevenida contra intrusos),
a dama sai à meia-noite
pedindo na estrada que a levem

alguém disse que seu coração é seco
como o jardim. e a dama bebe
após as sete


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só os lábios deleitem
o perfume do fogo
pois a essência que exala
expira breve, em logro

na noite em que parvos empalidecem
no escuro em que toda chama
consome o ar ao redor
estrelas brilham sob a cama.

perde o juízo, estranha
o nome sagrado nas águas.
esquece o dia de amanhã

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rosas murchas
e cravos despetalados
do vaso sobre a mesa

ó flores belas
nos jardins de estufas
crescendo formosas
nas cores da aquarela!

se agora as plantações
são artificiais, aonde achar a
beleza ? aonde
as flores silvestres
sob o sol florescem
e refrescam à chuva ?

os muros cobrem
jardins perfeitos. ao vento
estalam dentes de leão

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dias difíceis

Para Nuno Dempster

this a time to gather force and take dead aim and Attack
(there is no time, lou reed)

1.
eu não tenho tempo
para o que não quero
tenho todo tempo para quem
nada tem para mim
e cobra que eu cobro
quando apenas peço fique
abandone prazeres & títulos
para fugir da solidão

2.
o amor é antes de tudo você
não no espelho mas no buraco
sem ninguém nem nada
você acende a luz
para ver onde está
ou cava mais
e chega ao fundo ?
o amor é antes de tudo gentil
não se iluda com
beleza & fama fácil
se pagar por exclusividade uma vez
pagará sempre
não exclua, inclua
um coração ao menos
seja suportavelmente deficiente
na rede de eficiência humana



3.
gentileza é um modo de roubar
o coração e o bolso
certas tribos têm natureza pacífica
tinguis hindus tibetanos
cegos aidéticos velhos
diabéticos grávidas filhotes
gentileza é compreender
somos todos diferentes
nada indiferentes
em diferenças iguais

4.
diferença não é imagem
atitude de roqueiro travado
político com idéias envelhecidas
diferença é estar à parte
e andar pelas ruas
livre dos gritos da moda
difícil achar quem
ande à vontade sem se importar
com as vagas mais concorridas no vestibular
o sol na ferrari do vizinho
goethe era macrobiótico
einstein tocava mal violino
fazer poesia não é citar autores
fazer poesia é ser único até o fim
sem contrato de exclusividade
mesmo que a esquizofrenia
exija heterônimos e dramatis personae






6.
eu não tenho medo de perder tempo
sorrio para quem me acha otária
saúdo os que ganham disputas
nunca conheci
quem ganhou a vida com poesia
poesia é reconhecer o outro
o único pão na mesa
alimenta o mundo todo
palavra é pão eterno
se tudo acaba num suspiro
dentro do silêncio a palavra
guarda a explosão para o fim





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fogo branco

ofélia

o meu eu foi escavado
em seus olhos noturnos

turno após turno
galerias sufocantes

abrir o quanto antes
o céu sonhado

na pupila da papoula
na papada do gigante

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fogo

um circo inteiro traz o homem-bala
quando pergunto se tem fogo:
elefantes dançando polca
formigas escrevendo aramaico
e a família de equilibristas chineses !
só fogo não tem.
vou embora olhando estrelas furtivas
nos buracos de lona do circo

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ritual budista

a cabeça pende no peito
moedas cobrem as pálpebras
as duas mãos no coração
crisântemos amarelos e brancos
em cima do terno amassado
unhas e cabelos da família
protegido por deuses

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ascese

subi contigo a escada,
que diziam, levava ao céu.
subi de mãos dadas.
fechei os olhos. chuva de flores miúdas
arranhava o rosto.
abri os olhos – percevejos de lata
agarravam o cabelo e o vestido.
você ria, ria, ria,
enlouquecido !
seus dedos estrangulando os meus
a boca despejava encantamentos
para chegar ao topo mais rápido.
da escada rolavam mulheres crianças homens
estúpidos escalando degraus
esmagados pela fúria dos que subiam
sem parar nem olhar atrás.
você ria, ria, ria,
do ataque da esquadrilha de máquinas de costura
e bibliotecas com alfabetos emaranhados.
o céu mais azul suicida lembrava
o silêncio do mar sepultado embaixo
você nem viu quando as raposas me rasgaram os olhos
e tiraram o coração.
você ria, ria, ria,
levando a boneca de trapo ao alto da escada

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perfume de flores perdido

certo, os olhos guardam
a vela menor em velas derretidas
e os santos partem em férias

certo, o rancor é uma flor
cultivada pérola em concha
mergulhadores saltam no abismo
tateando sais que fustigam a sede no mar profundo
ostras devoram membros
indecisos

certo. deixe os pés seguirem o perfume
sem perguntar onde

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viagem

eu viajei e
deixei uma casa com
cortinas e tapetes flutuantes
atrás

eu viajei e vi
as coisas
as pessoas
a mesma
gelatina espessa entre eu e elas
espetáculo da natureza
a paisagem sonho
e dedos trêmulos na fotografia

vi bem perto a lava vulcânica
lamber meus pés
no pico da montanha mais fria o sorvete
aquecendo o nariz
perdi por bobagem
o clique mágico da eternidade
um cisco no foco da câmera
abriu uma cratera em meu crânio
e caí no deserto

vi homens de quatro
lixando o chão com a língua para os chefes
olhos esmagados fora dentro ovos estrelados
num céu jamais visitado
vi um coração humano
despejado no lixo



entre pacotes de sopa vidros de remédio talões de cheque
um livro queimado e rasgado
cheio de palavras que amei
quando vivia

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fogo branco

os olhos despencam de nuvens
e perdem o brilho ao ver o aterro

lá em cima o azul no céu azul

aqui embaixo a fome busca sangue
nas montanhas de lata, papel, plástico

o super-homem fura a barreira do som

humanos de menos chupam agulhas usadas
bebem gotas de xarope com mosca

lá em cima, olhos azuis de gelo
começam a turvar, gorar

aqui embaixo alguém canta um hino

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voar mais alto e longe
do espelho que fabrica o mundo
os teares continuam estalando
a barbárie foge do escândalo

voar mais alto e fundo
a superfície dissolvida da psique
sem truque ou recalque, sem luvas e alívios
cada vez mais perto o silêncio

cai no chão com estrondo

não hesite o instante
em que só o eu existe
percebe o momento
em que a porta abre

antes que feche
a passagem a pálpebra
dissolve as nuvens
que cobrem tua janela

e parte

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há tempos
estou olhando
um canto obscuro da mente
nenhum pedaço do céu
apareceu na frente
ou arrastou a asa
na casa escura
não sei quanto mais
vou ficar sob a montanha
de pensamentos
sei que a luz acende
de repente
e preciso ficar acordada

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(cut-up)

eu suspendo as tantas pernas
que um salto toca o bico
de um jato em pleno vôo
sou um inseto e, desculpe, te amo

te possuo quando não vês
teus grandes dedos plásticos
envolvem meu cabelo verde escuro*
tua mão surge da noite atroz

ouça-me
sou luz, escuridão,
meu nome é vida, morte,
mundo, sem nome,
certa música adivinhada,**
nunca escutada,
sal, silêncio,
nada,
onda.
* Lost in Paradise (Caetano Veloso)
** Fernando Karl

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quanto mais escuro
mais eu vejo

no espelho do oceano
brilha a lua

branca e iluminada
a laje da sepultura

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exercício secreto

para que o céu se move
sem que ninguém perceba
nossos olhos astrônomos
pálpebras coladas
em paisagens de papel e vidro.

para que cuidar de jardins
jamais vistos como os onde
as flores vibram e morrem ?

para que a vida existe e passa :
e só aqui vive
depois tudo passa
e cessa?

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canção de hong kong

o céu repartido em duas metades desiguais.
pão para mortos – há pão para mortos ?
fome no céu. distrair os famintos com danças
para os demônios não queimarem casas da ilha.
disfarçar o terror sob a maquiagem
e a lamúria da ópera

enquanto crianças tristes flutuam em carros alegóricos
nenhum morto morre de saudade.

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sem que ninguém perceba o sol
entra vermelho no quarto
trazendo sorrateiro
perfume de hortênsias
o enfermo pede um gole d' água
bebe sonolento
ao abrir os olhos
pombas brancas nos chapeuzinhos de enfermeiras

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enquanto o fogo arde na sala
o tempo esfria lá fora
abra os braços
as asas as
pétalas as pupilas
e voe

acima da voragem
as vértebras a vertigem
sobre as dobras de ondas de ontem

veja abaixo
a esfera
achatada
do chão

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poesia anos 90

um poema outro e mais outro
no festival da canção
puta sucesso na televisão

fim do jogo
atire o coração ao fogo

se ninguém ler estes versos
juro que nunca mais converso

se não me for consagrado gênio
desisto da arte. herdo o engenho.

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pesadas noites areia negra
sobre olhos olheiras na lua

pesadas nuvens noites
recolhidas no guarda-chuva

céu coberto por pontos negros
sonhos no papel

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eu abdico das estrelas
se elas, também,
saltarem as esferas

eu abdico do zodíaco
se os minutos
estancarem o relógio

eu abdico do sonho
se o aquário quebrar
a vidraça da lua

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eu amo esta tímida
e verde ilha
que se entrega ao mar

rodeada pela fúria
de ondas tocadas pela suave
brisa do mar

eu amo esta tímida
e verde ilha
que se entrega ao mar

nunca um lugar
no mar na terra
tocado pelo suave
ar

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gênio rebelde

todo gênio é terrível
preso na garrafa jogada no mar
espera um dia
sair do aperto na praia
vestir calção de banho
tomar sol
e escrever um dois poemas
decepção de quem acha
que atenderá seus desejos

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croniqueta de outono

setembro brilhava nas folhas de abril.
cresciam unhas debaixo de unhas
o outono flutuante revirava os glóbulos oculares
em direção a depois da próxima estação.

era tempo de revolução.

ditadores da informação aspiraram olho & ouvido
elefantes mergulharam no aquário.
o caracol subiu nuvens

o deserto confessou ter engavetado
mais pirâmides de areia que de múmias
o cravo deu três suspiros e plantou as botas.

entre as armas nucleares
– um alfinete.

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o poeta

o silêncio pende de grandes orelhas
(na cidade orelhões calados se ninguém alô)
o céu coalhado de estrelas
o jardim estréia jasmins
antes de abotoar mais um poema
falta uma palavra – uma só –
que dorme no dicionário.

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outros amores

um homem ama outro
homem, acende o fósforo no escuro a chama logo
apaga, olhares tremor suores,
perdido o coração lilás,
foto de álbum virada,
à noite febre de instante,
chorando a cama
no planeta distante

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correio mudo

eu sempre mudo
antes que tudo acabe
paraíso cego e surdo
sempre mudo
já dei o fora
na metade da missa
nunca espere que eu esteja
na janela de ontem
viajo na paisagem
que entorpece a mente
nunca sigo o relógio
busco o sol
que jamais muda

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canção do filho que vai

que eu nunca deite
sem dizer
“boa-noite”
a teus olhos vencidos,
tuas mãos incansáveis.
sorriso, câimbras.
que não viaje
sem antes pedir
“bênção!”
ainda que teus olhos não vejam
(mãos ocupadas em esconder)

b O c e j O

e só em sonho escute
“adeus”.
virei recolher as pérolas
amanhecidas em tua face.

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não chore, meu filho,
não chore que a vida
é tédio sem fim.
é mal sem remédio
de fracos e médios.
os fortes, os bravos,
só gritam, enfim.

vivemos, sonhamos.
aquele que é forte
respira a morte
da dor quer fugir.
no arco que entesa
as vértebras presas,
esconde o horror
de ver só a si.

o forte o fraco
inveja, seus medos
cobertos tão cedo
na luta feroz.
os tímidos, opacos
girando espelhos
mostram a dura
verdade atroz .

esquece, vive-se
morre-se, esquece.
do sonho passamos a outro.

não cures da vida
a morte é que é certa
a morte há de vir!















Selva de Sentidos©Marilia Kubota, 2008

E D I Ç Õ E S
Ǎ G U A ₣ O R T E
*
D O B R A S I L

Rua Brig . Franco . 549 . Mercês . Curitiba . Paraná . Brasil . 80430-210
fone. 41-30857210

2 comentários:

Benjamim Linhares Machado Marchi disse...

Muito interessantes os poemas! Não li todos, confesso, por serem muitos. O que mais gostei foi do primeiro, do beija-flor! Muito legal seu blog! Continue escrevendo assim!

www.omalucosadio.blogspot.com

Simone Santana disse...

:) Você é muito linda, seus textos são lindos.