terça-feira, 26 de maio de 2009

NA TEIA

Quase tudo limpo, só precisava passar pano na escadaria que dava para a torre. Lava toda a escada, não abre a portinhola, avisou a Irmã. Achavam, a alma da freira morta descansava ali. Subi, de cara a porta fechada. Limpei de cima a baixo. Terminei de esfregar os degraus, o sol se escondia. Suspirei de cansaço, tenho braço forte de cortar cana, não igual à Mãe, mas tenho força. No alto da escada uma luz branca como a luz da lua. Eu ia embora, acertar o trabalho com a Irmã. Procurei em todas as salas, nos corredores, nas celas, na capela, no jardim, na horta, no pátio. Nada. Gritei : Irmã Cecília ! minha voz tombou no espaço. Ouvi alguém responder. Cantando ? No alto da torre. Subi as escadas, brilhantes. A luz branca como a luz da lua jorrava das frestas da portinhola. De trás dela, a voz. Que canto, aquele ? Triste, triste, triste. A porta fechada, mas eu tinha as chaves das portas e das janelas do convento. Procurei a chave, encontrei uma, em forma de crucifixo. Abri.
Grandes teias de aranha cobriam o quarto com um véu de fios iluminados por uma janelinha aberta numa das paredes. Fora as teias nada mais ali. Fiquei com medo de entrar e virar comida de aranha. Dei um passo. Ia voltar mas o vento fechou a porta. Uh uh uh Aquela a voz que eu tinha ouvido, a que cantava, o vento. Tentei abrir a porta, trancada. Bati, chamei Irmã Cecília. Em vão. Antes de começar a chorar, cruzei o véu das teias em direção à abertura quadrada da janela. Uh uh Embaixo, o jardim confuso do convento. A janela minúscula para que alguém pudesse descer por ela. Irmã Cecília, gritei, até cansar. Exausta, escorreguei pela parede, caí sentada no chão. Fiquei ali, aranhas transparentes beliscando as lágrimas que dissolviam suas teias. Uh. O vento parou de soprar. Parado, parado, silêncio ao redor, dormi, frio, medo. O hábito da freira tocou meus ombros. Filha, é noite, vai embora” Pagou o trabalho e me acompanhou até o portão , calada. Caminhei sonâmbula e só fui despertar do lado de fora. Pedalei no escuro, de volta para casa. Cheguei esbaforida, Mãe preparando a sopa da janta. Me abraçou forte, me viu tremendo. Queque aconteceu ? Contei, tinha ido no convento, trabalhado o dia todo. Não sei porquê, eu que era tão falante e contava tudo à Mãe não disse, tinha ficado presa na torre. Mãe riu. Você ficou é andando de bicicleta por aí. Tem mais ninguém no convento. As freiras se apavoraram com o fantasma de Irmã Cecília e se mudaram Quando Mãe falou o nome da morta, procurei no bolso o dinheiro que ela havia me dado. Mostrei as duas notas provando que eu dizia a verdade. Mãe teve um tremelique, riu nervoso. Disse Vai se banhar, toma sopa antes que esfrie. Enquanto comia, olhava as notas na mesa. No outro dia não estavam mais lá. Mãe voltou da venda cheia de sacolas. De noite ajoelhou diante do retrato de Nossa Senhora, rezando pelo descanso da alma de Irmã Cecília.

Publicado no Suplemento de Minas Gerais

Nenhum comentário: